janeiro 2019

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Damares e Exú


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A evangélica Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (fico constrangido só de me imaginar a explicar a existência deste cargo para um estrangeiro) jamais acreditaria fazer algo que não fosse a obra de Cristo. Mas sua última atitude definitivamente não foi de Deus...

Sim, a primeira polêmica do governo Bolsonaro se relaciona muito mais com uma figura que os evangélicos insistem em associar ao mal. E isso não é uma sacadinha para dizer que Jesus se importava com o perdão, enquanto o governo Bolsonaro quer matar bandido. Tem a ver com o fato de que Exú é o padroeiro da mídia - e por consequência, deste governo.

Em artigo que, infelizmente, não está mais disponível na Internet (mas está no cache do Google), Pai Rodney afirmou que Exú, se pudesse se apresentar, o faria assim:

“Disseram que eu era o diabo. Mario Cravo esclareceu: Não sou diabo nem santo, sou Exu! Muito prazer! Não ligue para o que dizem a meu respeito, tudo mentira! Quem pode me definir se sou a própria contradição? Nem bom nem ruim, nem quente nem frio, nem sombra nem luz! Mas não se engane, não sou meio-termo. Sou tudo e não sou nada! Ousadia é meu nome. Estou sempre pronto, pra luta ou pra farra. Experimentei o melhor da vida, e gostei! Se me disserem que é impossível, vou e faço. Se me pedir, eu dou. Se me agradecer, eu retribuo. Se me der, eu aceito. Se me negar, eu tomo. Aos meus, ensinei a rir da própria sorte, a ter esperança, a acreditar pra ver. Se a vida vai mal, sambo e esqueço. Se vai bem, sambo e festejo! Já te disse meu nome? Sou Exu! Muito prazer!”

Mais adiante, Rodney explica a função do orixá:

"Senhor dos caminhos e das encruzilhadas, mensageiro dos orixás, Exu é o dono da rua. Vale lembrar que a encruzilhada tem uma importância simbólica universal, representando o centro e o lugar de passagem entre os mundos dos homens e dos deuses. É a morada de Exu, que tem justamente a tarefa de ligar o sagrado ao profano, sendo o orixá da comunicação e o princípio dinâmico que rege a existência.

"No local em que duas ruas se cruzam, Exu recebe suas oferendas, atende e leva os pedidos dos homens aos orixás. Ele que abre os caminhos, por isso é o primeiro a ser cultuado e sem sua permissão nada acontece. As festas de rua, com muita gente, muita bebida e muita alegria, são suas preferidas. E a tradição dos terreiros de Candomblé recomenda que nenhum fiel brinque o carnaval sem prestar homenagens e reverências a Exu".

Exú não é necessariamente mau, mas é bem sacana quando quer. E sendo o truqueiro da cultura Iorubá, Exú é o grande comunicador. O padroeiro da mídia.

O papel de Exú remete ao de Hermes na mitologia grega. Foi ele quem, segundo conta Heródoto, inventou a lira a partir do casco de uma tartaruga por ele escapelada. Ao contrário da flauta de Pan, usada apenas para a arte, a lira é usada por Hermes para contar a história do mundo. Uma mídia.

De posse dela, Hermes, faminto de carne, decide roubar o gado de Apolo, deus da guerra, mais temido dos filhos de Zeus.

"Hermes, apesar de recém-nascido, conseguiu levar cinquenta animais de uma vez e conduziu-os por um caminho arenoso, porém, com uma inimaginável capacidade para não ser rastreado: o divino menino inverteu a posição de cada casco dos animais, de frente para trás, fazendo qualquer um pensar que o rebanho havia caminhado na direção oposta. Ele, ao contrário, manteve suas sandálias na direção correta e partiu com os cinquenta animais..

"(...) Assim, o deus conduziu o rebanho até o rio Alfeios, onde o alimentou e decidiu aprender a arte do fogo".

(Texto do Mitologia Grega Br)

Quando Apolo descobriu tudo e foi tirar satisfação com Hermes, este oferece sua lira em troca do rebanho inteiro. Encantado pelo som, Apolo aceita o acordo. Em vez de aniquilar o truqueiro (truque em grego é techné, raiz etimológica de técnica e tecnologia), Apolo se deixa encantar pelo show.

Comunicação é isso, ilusão e esquecimento. A 30 quadros por segundo, como disse Jean-Luc Godard. Iludido o público, abre-se o caminho para se exercer o poder.

Se alguém duvida que Exú é o padroeiro da mídia, basta um olhar mais atento sobre as últimas encruzilhadas midiáticas. Quando o "Cidade Alerta" passa horas procurando uma adolescente desaparecida, lá está Exú. Quando William Bonner lê editorial em defesa da atividade jornalística, é ele quem está lá também. Quando sua tia compartilha notícia falsa no WhatsApp, Exú até se identifica. Quando Silvio Santos assedia uma mulher ao vivo, adivinha, lá está Exú. E quando o cachorrinho morto no Carrefour de Osasco vai parar no céu em charge que viralizou no Facebook, não é porque Jesus o colocou lá...

O que nos leva de volta ao governo do fim do mundo e sua ministra. A primeira semana da era da fanfic foi de jornalistas maltratados na posse, ministério do Trabalho em vias de extinção, demarcação de terras indígenas a serviço do agronegócio (provavelmente para desmatar a Amazônia e vender soja aos chineses, pois o Brasil faz limpeza étnica com objetivos econômicos idiotas) e salário mínimo reajustado abaixo da inflação. Há ainda denúncias de invasão de gabinetes de deputados de oposição e a explicação estapafúrdia, a lá PC Farias, do tal do Queiroz sobre a movimentação atípica em sua conta.

Pois as últimas 24 horas foram de discussões rasteiras sobre o que é cor de menino e menina. Até marcas fizeram posts com o mote azul/rosa no Twitter. É uma discussão necessária, mas chama a atenção que, no meio do caos, a lira da evangélica Damares ainda nos encanta na encruzilhada midiática.

Em sua posse, Damares disse que "o estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã". Em algum lugar na encruzilhada, Exú sorri.